No Lado de Baixo... - O Mensalão (Cap V)
Um presidente tentou inovar. Designou um operador para concentrar a arrecadação e distribuição, ao invés da desconcentração até então praticada. Estabeleceu porta única. Esse presidente não concluiu seu mandato, pela revolta institucional dos representantes que resultou em seu impeachment. O sucessor, de temperamento medíocre, governou sem maiores pressões em seu mandato tampão, como se o país passasse pela ressaca letárgica. Ganhou relativo apoio popular, a ponto de fazer seu sucessor, num acordo político de revezamento que findou por não se cumprir no futuro.
Não se cumpriu porque o real compromisso sucessor eleito era com os interesses internacionais. Dentro dos mais novos conceitos adotados pelos grandes interesses econômicos, já num ambiente hegemônico e não mais bipolar, os grandes atores sentiram-se livres o suficiente para, pelo dinheiro e poder, atropelarem os movimentos sociais que vinham adquirindo dimensão desde a Revolução Francesa de 1789. Na pax americanae, a economia passou a ser um fim em si mesmo, não uma ciência a serviço da humanidade.
Na defesa dessas teses, novos movimentos colonialistas surgiram. Agora não mais pelo princípio do manus militaris, mas pela cooptação de governantes simpáticos a si. Estavam dispostos a pagar os preços necessários para isso. E braços públicos mundiais armaram-se para garantir os interesses particulares nos países não simpáticos, numa fusão nunca vista desde o fim dos absolutismos.
O governante, com aprovação de congressistas bem aquinhoados com emendas e com ação de lobistas, doou muito do patrimônio nacional às grandes corporações dos interesses. Como quatro anos seriam insuficientes para completar a demolição, para dourar todas as pílulas, paga-se uma reforma constitucional permitindo-lhe legitimar um segundo mandato, pois o governante de então mostrou-se mais confiável e dócil às ordens do que seu medíocre antecessor. A ponto de seu chanceler submeter-se a tirar os sapatos para revista pessoal pelos agentes da imigração americana. Em missão oficial. Assim rifa-se o ajustado e até a ordem constituída, tudo em prol da certeza da continuidade das alienações de soberania. Cria-se a releição constitucional.
De fato, por dois mandatos, essa combinação foi cumprida. E os representantes foram efetivamente pagos por seus serviços, pelos votos que homologaram a colonização nacional, pela tese do estado mínimo, fundamento pretextual. O estado mínimo, cujos defensores arrefecem da tese somente quando dele necessitam para a manutenção de seus interesses. O estado que privatiza lucros e socializa prejuízos.
Como evidente, o clima social degradou-se pelo empobrecimento relativo do país.
Era a hora de começar a realizar o plano principal. E aí, aquela meninada de então, agora já velha, percebeu que as condições essenciais estavam postas. E vence a eleição.
E chega-se, então, ao exercício de sua primeira fase. Impossível alterar a prática política de cooptação. Vão-se os anéis, paciência, fazia parte do planejamento para essa fase. Novamente, o loteamento dos diversos escalões da máquina governamental, indicados pelos próprios representantes, como instrumento de desvio de recursos A capacidade de articulação e a continuidade dos mecanismos para cooptação de congressistas criaram condições para aceitação das medidas a serem implementadas.
Na primeira etapa de execução do plano, anos de contenção e pagamento de dívida externa, ainda que parcialmente por sua internalização. As críticas pela mudança do eixo nacional foram tímidas, dado o carisma pessoal e a capacidade de comunicação do escolhido e de estabelecimento de empatia com a população consolidada pelo estabelecimento de ações sociais e de ataque à miséria endêmica nacional. E, nesse ambiente favorável para a situação, aproximava-se a disputa eleitoral para a segunda etapa.
Os opositores, em desespero pela dificuldade de defesa de seus projetos, ganharam repentinamente novo alento. Foi o episódio chamado mensalão.
O chamado mensalão, apelido mercadológico atribuído às práticas habituais de cooptação de congressistas, trouxe à tona os caminhos percorridos pelos recursos desviados para pagamentos espúrios a congressistas. Aproveitando-se algumas das brechas da legislação que davam às agências de publicidade tratamento especial para sua contratação. O mesmo mecanismo anteriormente adotado pelos governos pós-redemocratização. Os meandros foram tornados públicos e os opositores tentaram transformar o episódio num fato inédito, quando, de fato, sabiam da habitualidade da prática e alguns deles até já se haviam beneficiado dela. Mas era um bom momento e um forte fato político, capaz de impedir a reeleição pelo desgaste no imaginário popular, bastava explorá-lo. Momento oportuno para o retorno do processo colonialista. Ouriçaram-se novamente os interesses econômicos especulativos. Quem sabe, conseguiriam dar a volta por cima e doarem mais alguns bens estatais, como a petrolífera, bancos de fomento ou centros de pesquisa, que haviam ficado para trás.
Mas, os estrategistas internacionalizantes não contavam com um fato novo. Não imaginavam o comprometimento pessoal com o plano de longo prazo.
E, por esse plano, estrategistas e operadores, ambos articuladores que asseguravam maioria congressual, assumiram para si as ações, blindaram o governo, imolaram-se politicamente pelo ideal do plano. Isso era inédito em episódios anteriores, pois as lealdades de então eram pessoais, fulanizadas. Agora não. Pela primeira vez havia no panorama político a lealdade a um ideal, a um projeto. Que gente estranha.
Desarticulada e sem entender, a oposição optou por fazer sangrar a ferida até a próxima eleição, atacando a credibilidade do governo. Em verdade, quase o conseguiu, sendo derrotada somente pela imagem carismática que o escolhido consolidou.
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