quarta-feira, julho 29, 2020

Poder Militar

A concepção atual dos exércitos nacionais talvez não tenha dois séculos, gradualmente adotando um corpo permanente e reservas capacitadas.
Da mesma forma, seu objetivo deixou de ser a defesa dos interesses do Soberano e adquiriu o conceito de defesa nacional, ou de seus interesses definidos pelos seus governantes.
No mundo globalizado e cada vez mais assimétrico na capacidade bélica, este conceito está sendo alterado rapidamente, ninguém consegue ainda vislumbrar exatamente em que se transformará.
A grosso modo, o poder militar ofensivo e defensivo pode ser classificado em quatro níveis básicos.

No nível 1 podemos incluir os países em que  suas forças armadas são capazes de combater somente sublevações e desordens internas. Por essa razão, representa facções políticas, imiscui-se e se mistura com as diversas correntes do poder civil.
São forças com poder muito limitado de defesa de agressões externas promovidas  exclusivamente por outros países fronteiriços do mesmo nível.
Seu poder é local.
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No nível 2 estão as forças capazes de repelir agressões externas do mesmo nível, ou inferior, além de impor seus interesses aos países fronteiriços do grupo 1. Ainda se verifica, embora em menor escala, uma contaminação do poder civil por elas.
Seu poder é regional.

No nível 3 se encontram forças capazes de, além de repelir agressões externas de mesmo nível, impor seus interesses aos países dos grupos inferiores. Já não existem interferências maiores no poder civil. Incluo nesse grupo a França, Alemanha, Reino Unido, como exemplo.
Seu poder pode ser exercido contra países não fronteiriços, inclusive intercontinentais.

No grupo 4 há o pequeno grupo de países em que seu poder, além de repelir invasões territoriais, são capazes de impor seus interesses de maneira global e intercontinental.
Nesse seleto grupo despontam os USA, como maior potência militar, a Rússia, a China.
Neles, tal como no grupo anterior, as forças armadas não interferem no poder civil.
Trata-se de uma classificação primária, sem rigor técnico, apenas para fins de raciocínio, sem considerar os demais componentes do chamado Poder Nacional.

O Brasil, em sua Constituição já em seus Princípios Fundamentais, abandonou qualquer ato de guerra intervencionista, limitando-a a casos de agressão estrangeira, ou seja, em autodefesa.
Em qual nível estaria o Brasil? No grupo 2.
Por essa razão é tão importante para nós a integração regional, também definida como princípio fundamental em nossa Constituição. A desarmonia com nossos vizinhos fronteiriços seria a única possibilidade de guerra viável, não assimétrica. Com fronteiras definidas e pacificadas, a integração regional é nossa garantia de paz imediata.

Encontra-se em debate a ampliação dos gastos militares do Brasil de 1,3% para 2% do PIB, R$ 7,3 trilhões em 2019.
O orçamento do Ministério da Defesa se manteve na ordem de R$ 100 bilhões entre 2010 e 2018, chegando a um mínimo de R$ 69 bilhões em 2018 e R$ 70,1 previstos para 2020, nível semelhante ao de 2006.
A proposta elevaria o montante para pouco mais de R$ 140 bilhões. O argumento é nos prepararmos contra intervenções externas. 
Um propósito justo, mas justificável?

As únicas ameaças para as quais não estaríamos teoricamente preparados viriam dos países dos grupos 3 e 4, isoladamente, ou do 2 em bloco, pela extensão de nosso território e dificuldades para combate em várias frentes. Contra essas, a única providência realmente eficaz é o fortalecimento de relações harmoniosas e solidárias com nossos vizinhos.
E contra os do grupo 3 e 4?
O orçamento da Defesa dos Estados Unidos para 2020 alcança a ninharia equivalente a R$3,8 trilhões, mais da metade de nosso PIB. O da China, na ordem equivalente a R$ 500 bilhões, mas não são dados muito confiáveis, seja pela transparência, seja pela conversão de moedas. Da Rússia, algo em torno de R$ 300 bilhões.
É de se considerar também que, no nosso caso, esse orçamento inclui os gastos com pessoal e pensões, esses sensivelmente majorados em 2019 e em 2020, como pretendido. Não tenho elementos para afirmar que nos demais países também se incluam naqueles valores os salários, pensões e outros penduricalhos tão nossos.
Enfim, sair do patamar atual de 70 para o pretendido 140 não nos incluiria no grupo 3.
Eu me valho de Sun Tzu, quem não conhece a si e a seu inimigo tem derrota certa.
Com R$100 ou R$140, continuamos a não poder fazer frente nem sequer a países do grupo 3 numa guerra defensiva.

Há um sonho escatológico na necessidade de nuclearização. 
Armas nucleares só têm sentido se houver possibilidade de logística para seu uso.
Por esse motivo, os Estados Unidos não as utilizou contra a Coréia, apesar da vontade de McArthur, pois a Rússia já dominava também a tecnologia e teria áreas populosas do território estadunidense a seu alcance, diferentemente dos próprios Estados Unidos que não teria raio de alcance suficiente para lançar em áreas estratégicas soviéticas.
O aperfeiçoamento de mísseis balísticos, além dos de cruzeiro, não significou uma vantagem isolada, pois ambas as potências mantiveram-se equivalentes. A corrida espacial também não os diferenciou sensivelmente.
E nós? Ainda que dispuséssemos da tecnologia, o que até estava a caminho antes do golpe geopolítico de 2016, teríamos alguma vantagem em ter um arsenal nuclear?

Decididamente não!
Só teríamos possibilidade de lançá-lo contra nós mesmos, em nosso território, ou no máximo contra algum vizinho, o que seria também um suicídio.
De forma alguma impediria, ou inibiria, uma ação do grupo 3 ou 4 contra nós.


Afinal, o que nos ameaça? Nossos vizinhos? Claro que não.
Interesses do grupo 3 ou 4?
Em parte, sim, mas com nosso poderio bélico, não sustentaríamos qualquer combate por mais de 15 dias, e com uma destruição impensável.
Além do mais, os interesses desses grupos foram atendidos sem disparar um tiro.
Com 
ainda poucas exceções, TODAS nossas riquezas minerais estão em suas mãos, exploram o quanto queiram delas e a parte que nos toca nem sequer cobrem os danos ambientais permanentes que nos deixam. Além, claro, de nos garantir as  divisas que nos permitem comprar deles próprios os produtos industrializados e com maior tecnologia.
No ano passado foi-lhes entregue de mão beijada uma base nas portas da Amazônia, a Base de Alcântara. E tantas outras quantas queiram lhes serão entregues, trazendo para nós em particular, e para a América do Sul no geral, o próximo cenário de suas disputas globais.
Além do mais, nossas forças de defesa são adequadas para nos manter no grupo 2. 
O que queremos, afinal?
Manter uma força armada suficiente para proteger os interesses dos países do grupo 3 e 4? Servirmos de guarda-costas a seus interesses? Decididamente não precisam disso.
Ou, quem sabe, imaginarmos ter força suficiente para o plano de passar a boiada, de destruir a Amazônia e transformá-la em pastagem e soja pela legalização das grilagens?
Sim, destruir a floresta tropical representa uma ameaça global e que pode sofrer represálias. Enquanto a preservarmos, não estaremos ameaçados, mas só enquanto a preservarmos. Isso porque impacta globalmente no clima, apesar do negacionismo que parece ter se consolidado nestas terras tupiniquins.
Se continuarmos com esse pensamento, sinto muito. A Amazônia será ocupada, pouco importa se nosso orçamento de defesa é de 1,3% ou de 2%. Não há qualquer possibilidade de reação, pela assimetria de forças. Ainda que tenhamos uma tropa de selva bem qualificada. É irrelevante sem suprimentos.

Volto a Sun Tzu.
Quem sabe enfiemos a arrogância ufanista no devido escaninho e entendamos que nosso poder nacional não nos garantirá a Amazônia, mas que dela teremos a posse e soberania somente se cuidarmos bem dela.