segunda-feira, julho 20, 2020

" Não existe nada mais Z que um público de classe A" (Caetano Veloso) Parte II

Voltemos agora ao nosso desembargador Almeida Prado Rocha de Siqueira, cujos nomes, que me despertaram a curiosidade, talvez nada tenham em ligação às historinhas da parte I.
Como condená-lo por sua atitude pessoal execrável se nos permitimos conviver e até cultuamos com reverência essa elite arrogante, quatrocentona, escravagista em sua cultura e discriminatória como prática?
Como condená-lo se permitimos que os guetos de miséria afrontem com sua negritude e pobreza os nichos de riqueza que da própria aristocracia rural tiveram origem?

Sim, é condenável, despropositado, impróprio e indecoroso o comportamento que mostrou esse magistrado, brandindo relações e poder em afronta à ordem e lei. Mas como condená-lo isoladamente desconhecendo que essas posições sociais estratificadas têm sua origem na casa grande e na senzala, na coisificação do ser humano, na dor dos troncos e nos gritos dos rebenques?
Como esquecer que até hoje uns nascem para servir, outros para serem servidos? Aqueles cada vez mais, estes cada vez menos?
Dizem que o Brasil é o segundo país no ranking odioso da desigualdade, não sei se é verdade, desconfio muito desses rankings porque sempre me parecem simplificações de uma questão complexa. Mas os contrastes com os quais convivemos com naturalidade são aterradores.
Até quando permitiremos que os nomes impliquem em poder, poder de concentrar recursos, de distribuir migalhas, poder de vida e morte.

Vivemos momento de pandemia, para a qual não há proteção além de resguardo. Verdade, temos o SUS que impede o morticínio dos excluídos dos recursos. Impede é forte, minimiza é mais correto, mas ainda assim as estatísticas apontam uma mortalidade relativa bem maior nesses estratos. Neles não há saneamento, não há afastamento possível, não há dinheiro em banco, reservas, nada. Neles vendem-se almoços para pagar as jantas.
Neles não há respeito, são as grandes senzalas.
Neles não convivem os ossos dos barões, as nobrezas herdadas, salvo para receberem serviços, oferecendo em contrapartida à mera sobrevivência por mais um dia.
Vivemos momento em que forças de segurança substituem capitães de mato, executivos contratados, os feitores.
Vivemos uma nova face da escravidão, em que até o acesso a mobilidade social é visto com maus olhos.

Por isso convivemos perfeitamente com a venda de nosso País em fatias, as mais valiosas, pois engorda-nos com suas migalhas, ainda que à custa do emagrecimento de tantos e do abandono a um futuro soberano.
Novo normal, fala-se, velho normal é o que se espera.
Novo normal será somente quando as atitudes do Desembargador, ora na berlinda por ter se tornada pública, não mais estiverem presentes nos elevadores de serviço, nos ônibus e trens superlotados, mos sufocos policiais e suas balas perdidas, no descarte insensível de trabalhadores, no leilão das misérias.
Construiremos um novo normal?
Juro, não sei!!!