Estado Mínimo X Estado Necessário - Parte 1 Papel do Estado
As rápidas transformações globais iniciadas com o fim da IIGG e aceleradas com os desenvolvimentos no campo da microeletrônica e telecomunicações, da superpopulação e do fluxo de capitais, resultante e resultado da onda neoliberal que passou a ser dogmática no mundo ocidental por algum tempo, leva naturalmente a discussões sobre o papel dos estados e até de sua necessidade.
O conceito de Estado Mínimo tomou corpo como um axioma, independente da reflexão sobre o Estado necessário.
O Estado deve ter em si um conjunto de valores que se traduzam em Políticas Estruturais, ou Estruturantes, que lhe garantam sua própria razão de ser e seu caráter permanente.A governos, transitórios, políticas públicas conjunturais devem fundamentar-se naquelas.
Pretendo desenvolver essas idéias na sequência de postagens sob o mesmo título.
Nesta primeira, como alinhamento, transcrevo na íntegra o artigo de Ladislau Dowbor, publicado na página Diálogos do Sul.
“É preciso resgatar o papel do Estado como indutor de
desenvolvimento
O país retrocedeu e está prostrado, mas a crença na
“mercantilização eficiente” o inebria e impede de enxergar a si mesmo.
Todos temos um pouco de raízes nas visões de Celso Furtado.
Além das leituras, tive a oportunidade de cobrir pelo Jornal do Comércio de
Recife uma reunião da Sudene, em 1963, em que Celso Furtado pedia aos
governadores que resolvessem na própria reunião o andamento de alguns projetos.
Frente à resposta de um dos governadores de que seria preciso dar um prazo para
“as devidas considerações”, Celso respondeu secamente que também poderia tomar
tempo para as “devidas considerações” quando recebe pedidos dos governadores.
Faceta de um realizador frente aos marasmos políticos.
Celso Furtado nos permitia focar problemas estruturais da
sociedade. Queria na presente nota trazer o problema da subutilização de
fatores de produção no Brasil, tema que envolve tanto a economia como a
política, e tem tudo a ver com a dimensão estrutural dos nossos dramas.
A subutilização da mão de obra
A realidade é chocante: neste país de 212 milhões de
habitantes, o emprego formal privado se resume a 33 milhões de pessoas. Somando
11 milhões de funcionários públicos, são 44 milhões, apenas 42% da força de
trabalho de 105 milhões. A subutilização da força de trabalho constitui uma
dimensão particularmente gritante da nossa fragilidade econômica, pois se
trata, para além do drama social, de uma enorme insensatez econômica. A Síntese
de Indicadores Sociais 2019 do IBGE traz uma seção sobre essa questão.
Como ordem de grandeza, temos 40 milhões de pessoas no setor
informal. Segundo o IBGE, a renda desses trabalhadores é a metade da renda que
o trabalhador formal aufere. São pessoas que no essencial “se viram”. Ser
empreendedor individual sem dúvida frequentemente assegura uma aparência mais
digna à subutilização, mas vemos na própria uberização e terceirizações irresponsáveis
o que isso pode significar. E temos 13 milhões de pessoas formalmente
desempregadas. Somando os 40 milhões do setor informal e os 13 milhões de
desempregados, são 53 milhões, a metade da força de trabalho. A esse
contingente precisamos acrescentar o imenso desalento, pessoas que estão em
idade de trabalho, mas desistiram de procurar, e ainda as pessoas classificadas
como empregadas, mas que trabalham apenas algumas horas.
No conjunto, a subutilização da força de trabalho, num país
onde há tantas coisas por fazer, é absolutamente chocante. Em cada um dos 5.570
municípios do país, temos por exemplo pessoas desempregadas e terra parada. Não
é complicado pensar que se possa organizar um cinturão verde
hortifrutigranjeiro em torno de cada um, simplesmente articulando os fatores de
produção parados. Em Santos, no tempo de David Capistrano, acompanhei o projeto
em que os desempregados da cidade foram cadastrados e organizados na Operação
Praia Limpa, que permitiu realizar as obras de saneamento, tirando os esgotos
dos canais pluviais, o que recuperou a balneabilidade das praias, e em
consequência o turismo, a atividade hoteleira e semelhantes, transformando uma
operação temporária em empregos permanentes. Exemplos não faltam, planejamento
econômico e social consiste em boa parte em articular fatores subutilizados.
Um argumento ideológico sempre buscou justificar a
desigualdade com a falta de iniciativa dos pobres: o pobre não precisa que lhe
ensinem disposição para trabalhar, precisa de oportunidades. Isso envolve
planejamento e iniciativas públicas, em vez de discursos ideológicos.
A subutilização da terra
O censo agropecuário de 2017 nos dá outra dimensão da
subutilização dos fatores. O Brasil é imenso. Os 8,5 milhões de quilômetros
quadrados correspondem a 850 milhões de hectares. Segundo o censo, 353 milhões
de hectares constituem estabelecimentos agrícolas. Nesses, 225 milhões de
hectares constituem solo agricultável, portanto disponível para atividades
produtivas, tanto pela qualidade do solo como pela disponibilidade de água. O
que choca, é que somando a agricultura permanente e temporária, o uso produtivo
no sentido pleno ocupa 63 milhões de hectares. Arredondando, temos 160 milhões
de hectares de solo agrícola parado ou subutilizado. Essa área representa 5
vezes o território da Itália. Precisamos desmatar a Amazônia?
Grande parte dessa terra parada ou subutilizada é ocupada
pela pecuária extensiva. O limite entre terra produtiva e improdutiva gerou um
amplo debate devido à pressão secular pela reforma agrária no país. Usar
imensas regiões com quase um hectare por cabeça de gado gera sem dúvida
fortunas para os conglomerados agroexportadores de carne, mas para quem conhece
formas modernas de criação de gado semi-confinado, com as unidades de pecuária
plantando forragem, o desperdício torna-se evidente. Numa imensa parte do
Brasil, o solo constitui apenas a base para um rentismo improdutivo. A pecuária
extensiva gera pouquíssimo emprego, poucos impostos, e está articulada com os
grandes traders de commodities agropecuárias.
Um resgate do ITR, Imposto Territorial Rural, que no Brasil
constitui uma ficção, permitiria sem dúvida estimular a produtividade: como na
Europa e em outras regiões, o fato de pagarem impostos sobre terra parada
estimula os proprietários a utilizá-la de maneira mais produtiva, ou vendê-la
para quem produza. Em particular, é preciso tributar o rentismo, em que se
valorizam terras com a simples expansão de infraestruturas e da urbanização. Em
Imperatriz do Maranhão, mais de 80% dos produtos nas gôndolas dos supermercados
vêm de São Paulo, enquanto em volta da cidade dormem imensas extensões de terra
parada, que se valoriza passivamente com a expansão urbana. Estamos esperando
que “os mercados” resolvam?
A subutilização do capital
Tão gritante como a subutilização da força de trabalho e da
terra no Brasil, é a subutilização do capital, que se transforma em patrimônio
familiar e aplicações financeiras em vez de investimentos produtivos. Isso
trava o desenvolvimento de infraestruturas, a produção de bens e serviços e o
emprego. No Brasil raros que fazem a distinção tão essencial entre aplicação
financeira e investimento produtivo. Em francês, placements financiers e
investissements é bastante clara. O Economist, por falta de conceito de
aplicação financeira, distingue speculative investments e productive
investments. Mariana Mazzucato utiliza financial investments para caracterizar
a diferença. O fato é que no Brasil o que os bancos chamam de investimento
constitui uma imensa esterilização dos nossos recursos.
Os 206 bilionários brasileiros apresentados na edição
especial da Fortune são essencialmente donos de holdings, acionistas,
controladores de fundos de investimentos, donos de cotas acionárias, e
naturalmente banqueiros ou acionistas de bancos. A intermediação financeira
transformou-se entre nós em autêntica extorsão. Um dos principais mecanismos
são as taxas usurárias de juros, representando como ordem de grandeza ao mês o
que no resto do mundo se cobra ao ano. Exemplos de custo efetivo total de
crédito apresentados pela ANEFAC (Associação Nacional de Executivos de
Finanças, Administração e Contábeis) incluem, para pessoa física em junho de
2020, 74% em média no crediário comercial, 256% no cartão de crédito, 129% no
cheque especial, 46% no empréstimo pessoal nos bancos. A título de comparação
os juros sobre cartão de crédito no Canadá eram 22% ao ano, reduzidos por ordem
do governo para 11% com a pandemia.
Para pessoa jurídica a média apresentada é de 43%. Todas
essas taxas estão no mesmo nível desde 2013, apesar da forte redução da taxa
Selic.(1) O resultado é que duas forças essenciais de propulsão da economia, a
demanda das famílias e o investimento das empresas, se vêm drasticamente
reduzidas, ainda antes da pandemia. Lembrando que o último ano de crescimento
significativo da economia brasileira foi 2013, de 3,0%. Com a ofensiva contra a
fase desenvolvimentista e distributiva em 2013 e 2014, a guerra da Lavajato e o
caos pré- e pós-eleitoral, a economia brasileira está no sétimo ano de
paralisia. O primeiro trimestre de 2020, sem impacto econômico significativo
ainda da pandemia, apresentou uma queda do PIB de 1,5% relativamente ao
trimestre anterior. O dreno dos recursos pelos grupos financeiros desarticulou
a economia e a mantém parada.
Em termos de teoria econômica, o conceito de financeirização
se tornou essencial. Os trabalhos de Thomas Piketty, de Joseph Stiglitz, de
Marjorie Kelly, de Ann Pettifor e de tantos outros permitiram uma reviravolta
depois de 40 anos de dominância do discurso neoliberal. A base é simples: a
produção de bens e serviços, o PIB no mundo, aumenta em cerca de 2% a 2,5% ao
ano. Os rendimentos de aplicações financeiras em volumes elevados rendem entre
7% e 9%. Entre juros e dividendos, ganhar dinheiro, o grande dinheiro, se
divorciou em grande parte dos processos produtivos. O capital vai para onde
rende mais. O mecanismo básico de apropriação do excedente social se deslocou:
para explorar um assalariado, o empresário precisa pelo menos gerar um posto de
trabalho. Hoje o endividamento das famílias é generalizado, as tarifas absurdas
nos cartões atingem a todos. E os dividendos elevados nas empresas produtivas
tornam a expansão produtiva pouco viável.
O empresário efetivamente produtivo não precisa de
“confiança” ou de discurso ideológico, precisa de famílias com capacidade de
compra, para ter para quem vender, e de juros baratos para poder financiar a
produção. No Brasil, ele não tem nem uma coisa nem outra. Após tantos anos de
Ponte para o Futuro em diversos formatos, as empresas no Brasil estão
trabalhando com 30% de capacidade ociosa. Harvey tem razão, o que era capital,
portanto dinheiro inserido no processo de acumulação produtiva do capital, hoje
é essencialmente patrimônio. Entre 2018 e 2019, em 12 meses, os 206 bilionários
brasileiros aumentaram os seus patrimônios em 230 bilhões, um aumento de 23%
numa economia parada. E já na pandemia, nos 4 meses entre março e julho de
2020, o grupo mais restrito de 42 bilionários em dólares aumentou as suas
fortunas em 180 bilhões de reais: é o equivalente a 6 anos de bolsa-família,
para 42 pessoas, em 4 meses, em plena pandemia.(2) Lembrando ainda que desde
1995 esse tipo de ganhos é isento de impostos.
A dinâmica econômica da China, ou na Coreia do Sul, por
exemplo, não constitui um milagre, tratou-se simplesmente de assegurar a
orientação dos recursos financeiros para atividades produtivas. Um relatório da
ONU resume a questão: ”A prosperidade para todos não pode ser assegurada por
políticos com visão de austeridade, corporações centradas no rentismo e
banqueiros especulativos. O que necessitamos urgentemente agora é um novo pacto
global. ”(3)
Subutilização do potencial científico-tecnológico
Hoje o principal fator de produção é o conhecimento. O que
está se formando é muito mais do que de uma ‘indústria 4.0’. A mudança é
sísmica. Adotamos aqui a mesma visão expressa no New Scientist: “A tecnologia
tem um potencial tão grande que a expectativa geral é que o seu impacto seja
tão profundo quanto o da revolução industrial. ” (4 )Não é só o dinheiro que se
tornou em simples sinais magnéticos registrados em computadores, é o conjunto
da economia que desloca as suas formas de organização para o que André Gorz
chamou de “o imaterial”. Não é mais a General Motors e semelhantes que dominam
o jogo, são os sistemas de controle das finanças e das tecnologias, o GAFAM nos
Estados Unidos, o BAT na China, os SIFIs (Systemically Important Financial
Institutions). No centro da economia, não está mais a fábrica, estão as
plataformas, os gestores de fortunas, os controladores da comunicação.(5)
É impressionante o recuo do Brasil com a submissão aos
Estados Unidos no caso da tecnologia do G5, a desestruturação das capacidades
de pesquisa da Petrobrás, o fechamento do programa de formação de cientistas no
exterior, o travamento das bolsas de pesquisa e de pós-graduação, a venda mal
abortada da Embraer, a transformação do país em mero comprador de patentes: o
recuo nesta área terá impactos avassaladores sobre o futuro do país. Temos mais
de um terço da população sem acesso à internet, numa era em que ficar fora do
sistema digital significa isolamento social. Ainda temos universidades em que
os alunos tiram xerox de capítulos acumulados nas pastas de professores.
Ainda travamos acesso aos textos científicos quando o MIT os
disponibiliza na plataforma OCW (Open Course Ware), a China no sistema CORE
(China Open Resources for Education). O Japão há décadas possui sistemas online
de apoio tecnológico para pequenos produtores, inclusive de agricultura
familiar. A Finlândia há 50 anos lançou o programa de generalização de elevação
científico-tecnológica do país, com programas educacionais públicos, gratuitos
e universais. No Brasil ainda se discute a privatização e distribuição de
vouchers, proposta dos tempos de Ronald Reagan nos Estados Unidos. A
subutilização da imensa capacidade criativa da população, ao se travar as
oportunidades para a imensa maioria, constitui um crime contra as próximas
gerações, e demonstra uma profunda ignorância do que Jessé Souza chamou
adequadamente de A elite do atraso.
Subutilização das políticas públicas
Celso Furtado tinha a ideia clara da importância do Estado e
do planejamento. No nosso caso, em nome de ideologias ultrapassadas, está se
paralisando o país, mas também comprometendo o seu futuro. A ideia do ‘Estado
mínimo’ é simplesmente burra. Há coisas que a empresa privada faz melhor, como
produzir tomate, bicicleta ou automóvel. Entregar para grupos privados serviços
básicos como saúde, educação, cultura, segurança e outras políticas sociais
leva a perdas radicais de eficiência. O maior setor econômico dos Estados
Unidos é hoje a saúde, cerca de 20% do PIB. O custo dos serviços americanos de
saúde, em grande parte privatizados, é de 10.400 dólares por pessoa por ano. No
Canadá, onde os serviços de saúde são públicos, gratuitos e de acesso
universal, o custo é de 4.400 dólares. O Canadá está entre os primeiros em
termos de qualidade da saúde da população, no conjunto dos países da OCDE,
enquanto os Estados Unidos entre os últimos.
Mariana Mazzucato, no seu O Estado Empreendedor, e no mais
recente The Value of Everything, traz com força a importância do papel do
Estado na promoção de políticas. Não se trata do tamanho do Estado, e sim dos
efeitos multiplicadores, em termos de produtividade sistêmica do país, que pode
trazer um Estado forte e orientado pelos interesses da nação. No nosso caso,
com a apropriação de funções-chave do Estado por grupos privados, e a
liquidação da regulação financeira, é o conjunto das atividades do país que é
prejudicado, e inclusive tantas empresas produtivas que apoiaram os retrocessos
políticos. Entramos na era da pandemia com 6 anos acumulados de marasmo
econômico e social. Resgatar o papel do Estado como indutor de desenvolvimento,
resgatar a função do planejamento na articulação dos recursos subutilizados, e
em particular resgatar a regulação do sistema financeiro, para que financie o
que é necessário ao país, são apenas pontos de partida. É impressionante ler no
editorial do Financial Times de 4 de abril de 2020, em plena pandemia, de que
“os governos terão que aceitar um papel mais ativo na economia, e devem ver os
serviços públicos como investimentos, não como obrigações. ” Aqui economistas
pré-históricos falam em Estado-mínimo e qualificam os serviços públicos como “gastos”.
Que saudades de Celso Furtado.”
São Paulo (SP) (Brasil), 6 de out de 2020 às 12:03
LADISLAU DOWBOR
(Transcrito da publicação Diálogos do Sul)
1 Ver ANEFAC,
pesquisa mensal de juros – https://3783fb27-40b2-47fa-ab2d-4ffef8b3c87b.filesusr.com/ugd/21624f_3fc44b88833a444da1332c23eeec1c85.pdf
2 Dados
da Forbes: https://dowbor.org/2020/02/18676.html/ Dados
da Oxfam: https://dowbor.org/2020/07/bilionarios-da-america-latina-e-do-caribe-aumentaram-fortuna-em-us-482-bi-durante-pandemia-oxfam-brasil-2020-3p.html/
3 UNCTAD – Trade and Development Report 2017: Beyond Austerity, Towards a
Global New Deal – Unctad, Geneva, 2017, p. ii
4 “The
technology has such potential that its impact on society is widely expected to
be as profound as the industrial revolution.” – New Scientist, April 23, 2018
5 Detalhamos
essas transformações, e a gestação de um novo modo de produção informacional,
em O Capitalismo se Desloca: novas arquiteturas sociais, SESC,
São Paulo, 2020 – https://dowbor.org/wp-content/uploads/2020/05/Dowbor-O-capitalismo-se-desloca-Edicoes-SescSP-2020.pdf
Continuação em Princípios Fundamentais em
http://fregablog.blogspot.com/2020/10/estado-minimo-x-estado-necessario-parte_4.html
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