sábado, setembro 02, 2023

Cabecinhas de Alfinete

Recentemente foi republicado no Blog Mar & Defesa, artigo de lavra do GenRes Marco Aurélio Vieira.

Chama atenção o nível de alienação cívica dessa geração, infelizmente malformada, de oficiais do Exército.
Recomendo a quem minimamente deseje entender a cultura supremacista e a mentalidade predominante,  tantas vezes ameaçadora, que leia o artigo na íntegra.
(bit.ly/conspiracao-contra-a-patria)

O artigo fala por si só, mas vou destacar uns trechos (em vermelho) em que teço algumas considerações ao texto e à cultura interna vigente.

“Em dois séculos, os militares envolveram-se efetivamente na ordem política do País em 1821/1823, 1831, 1889, 1893, 1922, 1924, 1930, 1935, 1937, 1945, 1954, 1955, 1956, 1959, 1961, 1964, 1968.

Essa sequência por si só explicita a gigantesca interferência militar no Estado brasileiro. Mas lhe seja feita justiça ao autor. Militariza equivocadamente o movimento da independência e da abdicação, ambos movimentos essencialmente políticos.
Também trata como episódios discretos o que são períodos. Vamos lá:
O golpe militar de 1889 criou um período de instabilidades até 1893 e, lato sensu, até 1924. E isso no mínimo, se omitirmos suas consequências tardias no próprio golpe de 1930.
E do golpe de 1930 até 1946, um período de instabilidades, no qual o autor omitiu o ano de 1932. Assim como de 1954 a 1988, um período único de interferências em que os militares se imiscuíram com constância na política. Além de chamar golpe de revolução, o que é uma impropriedade.
Poderia também o autor citar, como semente do intervencionismo militar, o ano de 1869, após a deserção* de Caxias do teatro de operações e a sedição de oficiais em Assunção, somente controlada por Rio Branco.
Mas vá lá. O fato real é que temos dois séculos de instabilidades em que em todo o período há uma constante, uma parte vaga, um fator comum: os militares interferindo na política por seu poder armado.
* tratado como deserção (poderia ser até traição) pelo abandono do comando e do teatro de operações e transmissão sem autorização, manifestando posição política de que não havia mais sentido para a guerra em que estávamos envolvidos.


“Contudo, essa impressionante sequência de “intervenções” apresenta características que as classificam como únicas nas históricas relações políticos/militares (sic), do continente. Assim, embora as crises tenham sido sucessivas, o poder só foi exercido oficialmente pelos militares brasileiros por pouco tempo: logo após a República e por duas décadas em sequência à revolução de 1964.

Malgrado o autoritarismo que eventualmente acompanhou os militares na política, nossos soldados sempre se posicionaram em defesa de uma república liberal e democrática, sem jamais promoverem a ditador um caudilho fardado.”
Nesse parágrafo há um sentido dúbio. O que caracteriza um caudilho? Um líder, civil ou militar, não importa, que estabeleça uma ditadura personalista com quebra institucional e assuma o poder invariavelmente com apoio e sustentação de forças armadas? Pode haver um caudilhismo de grupo ou corporativo? Tal como foram as ditaduras argentina e a brasileira, com revezamento do caudilho de plantão dentro de seu
próprio grupo?

Eu penso que em tudo são similares.
O autor reconhece que o poder formal, oficial, não teria sido exercido por militares. E o poder real? E até os governos legitimamente eleitos, pressionados por ameaças e chantagens?  Com quem estava de fato o poder real?
É importante sempre lembrar que o primeiro Presidente da República eleito democraticamente para a função e que concluiu seu mandato sem ao menos uma tentativa de golpe de estado foi FHC, mais de um século após a Proclamação da República. No parágrafo seguinte, aí sim um absurdo conceitual. Se o autoritarismo acompanhou os militares na política, como se posicionaram em defesa de uma república liberal e democrática? Aliás, qual o conceito do termo liberal nessa oração? E qual a diferença entre os ditadores corporativos e os caudilhos latino-americanos? Nem o culto à personalidade os diferencia, sinto muito.
“Mas foi o General Góes Monteiro, intelectual e chefe militar da revolução de 1930, quem melhor expressou as relações entre Forças Armadas e Estado, no caso brasileiro. Dizia ele que é inútil tentar fugir à essa relação de poderes; “[...] o Estado e as Forças Armadas são dois entes distintos [...] e sendo o Exército um instrumento essencialmente político, a consciência coletiva deve-se criar no sentido de se fazer a política do Exército e não a política no Exército.”.
O conceito expressado por Góes Monteiro, um general golpista em sua essência, dá bem o tom da cultura supremacista que o autor endossa. Já na oração considera entes distintos Estado e Forças Armadas, mas, olhem o absurdo, os coloca paritariamente, não as segundas subordinadas ao próprio Estado, e propugna que, sendo o Exército um instrumento essencialmente político, deva ser autônomo no exercício de sua própria política. Raramente se vê um absurdo institucional tão distorcido e depravado em seus valores. Infelizmente citado pelo autor como uma referência.
É fundamental para a efetividade da democracia, que o estamento militar, originariamente pautado em sua conduta pelas noções de honra, hierarquia e disciplina, resolva suas questões interna corporis, não pelos laços legais estabelecidos entre o Estado (ou seu núcleo de poder) e o quadro administrativo, mas sim sem interferências político/partidárias.”
É claro que militarismo e política são antagônicos entre si. Os pilares do militarismo são a disciplina e hierarquia. Da política, a composição e diálogo. Militarismo é ordem, política é consenso. Nada mais antagônico entre si e por essa exata razão submete-se o militarismo à política num Estado Democrático de Direito. Militares cumprem as ordens emanadas dos poderes institucionais. Simples assim. E continua o autor sua exposição dissociando o “estamento” militar do Estado. Isso fala por si.

“No atual momento geopolítico, quando o poder militar está ditando mais que nunca a ordem mundial, é conspiração contra a Pátria cidadãos promoverem o descrédito de suas próprias forças militares, por meras divergências políticas domésticas. Mesmo porque, os homens passam, mas um Exército centenário, de relevantes serviços ao País e à democracia, permanece.


Inexplicável. O conceito supremacista está tão arraigado nas fibras dessa gente que é capaz de proferir os maiores absurdos sem nem sequer filtrar por um mínimo de conhecimento ou senso crítico.

Desde quando o poder militar está ditando a ordem mundial?
O autor não consegue retirar o véu supremacista para perceber que não há poder militar e sim poder de combate. Esse poder de combate é instrumento da geopolítica, extremo se utilizado, sutil se não. Mas instrumento do Estado, das políticas do Estado que lhe sustenta e mantém.
Há Estados sem exércitos, mas a recíproca não é verdadeira, reduzindo-se no caso não a exércitos, mas a bandos de grupos armados. De bucaneiros ou não.
Então o autor já erra na inicial. O que não surpreende.
Mas ele vai além.

Considera quem critique o tal poder militar um traidor da Pátria. Ou seja, extrapola  até Góes Monteiro anteriormente citado.
Agora temos a Pátria a serviço do exército. Inversão conceitual maior é quase impossível.
Pois de fato traidor é aquele que se vale dos meios que lhes são entregues para ameaçar exatamente quem lhos delegou. Traidor é o cão que morde a mão que lhe alimenta.

Por último, continua o general da reserva:

“Aos indignados com os rumos do governo depois das eleições de 2022, lembro que as Forças Armadas ainda são as únicas instituições de Estado dotadas de poderes constitucionais, e capacitadas legalmente para se contraporem aos atentados à democracia.”
Agora o Autor atropela os fatos, inclusive os recentemente ocorridos.
Erra e mistifica o general.
Não são as Forças Armadas únicas instituições de Estado para o fim que se refere. São as próprias instituições, os Poderes da República, que são três e neles não estão as Forças Armadas, porque poderes não são.
É a Constituição que assegura a contraposição a atentados. Inclusive quando os atentados são promovidos direta ou indiretamente pelas próprias Forças Armadas, como foi o caso em 2022 até 8 de janeiro de 2023.

 Sim, o Autor pode até ter razão. Pode o cachorro morder a mão do dono. Mas 
a garantia real está na Cláusula Pétrea Constitucional, Art 5o, XLIV, dispositivo que lhes inibiu por deixar claro que não haveria anistia e nem prescreveria o crime. Um dia seriam condenados, até independentemente de escreverem nova Constituição.
Não foram as Forças Armadas que impediram o golpe que elas mesmo fomentavam e que o Autor ainda fomenta ou justifica, direta ou indiretamente, em seu artigo. Foi a Constituição.

Há que se pensar, portanto, em conciliar Estado, Exército e brasileiros, porque no chamado estado democrático de direito não se trata de “submeter” a Força Armada ao poder discricionário do governo, isto é, à figura do Presidente de plantão. A instituição armada é detentora do monopólio legal da violência do Estado, e não é aconselhável colocá-la à serviço de políticos de ocasião, que diariamente explicitam suas incompetências quanto às questões militares, e que sequer distinguem ameaças estratégicas de possibilidades de emprego das Forças Armadas.

E mais uma vez o autor se mete de pato a ganso e considera-se a si e seus pares os detentores do conhecimento e discernimento superior. Além de reafirmar o conceito paritário de serem as Forças Armadas um Estado paralelo.

Primeiro, as Forças Armadas não são detentoras do monopólio legal da violência do Estado, apenas fazem parte do conjunto de instituições a quem o Estado delegou o exercício da violência em nome da sociedade, para evitar a autotutela. Pacto civilizatório.
Então, não é de exercício discricionário e nem necessariamente são armadas. Ou um juiz ao condenar alguém à privação de liberdade não exerce uma violência por delegação do Estado em defesa da sociedade?
Que cabecinha de alfinete, cruzes!!!
Mas não é sua culpa, esses conceitos lhe foram incutidos desde a juventude, desde os bancos escolares. Sua vida, certamente honesta de propósitos, foi baseada infelizmente por conceitos equivocados. Ele realmente acredita no que escreveu e nisso é mais digno de pena do que de crítica.
O erro não está nele, mas na formação que recebeu. e que lamentavelmente parece se repetir no erro até hoje.
Ou se atualizam inclusive para os cenários de conflito e dominação geopolítica atuais, ou se tornam inúteis. Como está de nada nos servem. Metendo o bedelho na política, servem menos ainda.
Somos mais fortes que nossos vizinhos, mas nossa segurança está na convivência harmônica e pacífica.
Em conflito contra qualquer um, somos mais fortes sim. Em conflito em duas frentes, há dúvida. E contra uma das potências com poder mundial, ficamos de joelhos em dois ou três dias.

Ainda assim insisto. Tomem um Plasil e leiam integralmente o artigo do general. Vale a pena.