domingo, abril 23, 2023

Verdades e Mentiras

Discute-se o direito de mentir. De fato, há uma questão de ordem moral envolvida. Seria a verdade um valor civilizatório? Haverá uma verdade ou tudo não passa de uma gradação de mentiras a gosto e mérito de cada consciência?  De cada intérprete? De cada momento?

Não havendo verdade, não há o que se punir a mentira, sendo essa afirmação uma verdade que, em não havendo como se demonstrou, leva ao paradoxo de que não havendo verdade, a mentira deva ser punida.

Pune-se a mentira por não existir verdade?
Não é a mentira que se pune, antes pune-se a tentativa de criar fatos a partir de abstrações e, com isso, provocar seus efeitos e consequências desejados.
Efeitos que podem ser concretos ou presumidos.
É a intenção delitiva que se pune, portanto.

A indução ao erro, dependendo desse e de seus efeitos, é criminalizada. Ainda que o erro não tenha sido concretizado.
A desinformação deliberada é uma tentativa de indução ao delito, portanto criminosa a depender dos efeitos a que se proponha provocar.
Pode-se impedir o crime ou somente punir a conduta delitiva do criminoso?
Bem, nesse quesito posto, o dano social em impedir a concretização do crime é menor, por princípio, do que a ação posterior, seja de punição, seja de compensação, seja de reparação ou neutralização.

Defendem os que fazem da criação de fatos seus argumentos, o direito à mentira e desinformação. Buscam até na Constituição o amparo a sua tese. Buscam no fato concreto o suporte ao direito de inventar fatos para atingir seus objetivos. Exercem claramente seu direito de mentir, sendo o sofismo somente uma roupagem camuflada à própria mentira.
A desinformação política tem o claro propósito de induzir o eleitor ao erro no processo político de disputa do poder. Com os meios de comunicação capilarizados, universalizados, perenes e em tempo real, massificados ao alcance dos dedos, potencialmente perigoso e permanente nos danos, exige tratamento preventivo antes de tornarem-se definitivas suas consequências.

Há realmente direito à desinformação, ainda que o vício dela decorrente leve à destruição e caos irremediáveis? Ainda que verdades não existam no terreno do absoluto, pois são essencialmente temporais, os danos causados não o são. Na permanente luta mitológica entre o bem e o mal, o bem vence, mas não anula o mal concretizado. Como também exige constância para que seus efeitos se produzam, enquanto ao mal basta a ação pontual para sua permanência.

Na vida o paralelo.
Permanecer vivo exige uma permanência dos atos, para morrer, não. A morte ocorre uma vez enquanto a vida é ininterrupta, exige a ininterrupção. Também isso vale para a verdade e a mentira. Esta permanente, aquela pontual. Ambas imanentes em mesma substância, transcendentes são as consequências.
Por essa razão, a mentira precisa ser contida, limitada, restringida à temporalidade das verdades, para que estas, e somente estas, gerem consequências construtivas.
Não há, e não pode haver portanto, direito absoluto à expressão quando se trata de marcos civilizatórios. Exatamente porque esses são temporais.

Poderia então ser alegado, nessa condição, a imutabilidade dos marcos civilizatórios, por serem incontestáveis. Seria assim se as verdades não fossem temporais, não se sucedessem, se transformassem, fossem substituídas pela ciência e lógica.
Houve um tempo em que o geocentrismo era verdadeiro, até que se provasse cientificamente o contrário. Houve um tempo, no mundo judaico-cristão, serem Adão e Eva a semente fundamental da humanidade em abstração aristotélica, concepção hoje já revista pela lógica.
Assim sucedem-se as verdades. Pela ciência exata ou pela lógica. A seu tempo, sua simples negação sem os fundamentos científicos, exatos ou lógicos, geram efeitos desestruturantes, disruptivos, deletérios.

Estamos no limiar de gigantesco salto no processo civilizatório.
O desenvolvimento científico na nanoeletrônica e o crescente domínio da informação acumulada, associado ao desenvolvimento da inteligência artificial a simular os mecanismos cerebrais de raciocínio dialético, nos permite prever que, em muito curto prazo, os equipamentos, de forma autônoma e autóctone, determinarão o progresso dos marcos civilizatórios.
De forma incipiente, os algoritmos das redes neurais de relacionamento já formatam verdades segmentadas, aderentes os princípio e valores comuns de determinado grupo. Os algoritmos decidem quem é exposto a determinada informação e essa exposição objetiva o reforço dos princípios e valores detectados, nunca à sua evolução, pensamento crítico ou debate.
No primeiro momento o interesse é puramente comercial, publicitário, pela aglutinação acessível e circunscrita de consumidores potenciais permeáveis aos produtos e serviços anunciados.
No entanto, a evolução científica em processos de inteligência artificial permitirá a geração de verdades massificadas sem o menor filtro ético. Os verdadeiros robôs serão os humanos, enquanto ainda existirem.
Eis o maior dilema deste século, em que todos os valores civilizatórios estarão em xeque pela perda de referências.

No estágio atual, a inteligência artificial é capaz de produzir sínteses descritivas e lógicas sobre qualquer assunto do conhecimento humano de acordo com a tese solicitada. Todo o conhecimento humano está disponível e capilarizado numa mega e gigantesca Alexandria, chamada de nuvem. Ninguém sabe exatamente onde se localiza fisicamente, mas existe e é acessível. Conforme a demanda, formulada a síntese a partir do acesso ao conhecimento acumulado. E isso é apenas o começo, nem roteiristas criativos ficcionais conseguem imaginar a evolução.
Pode ser manifestada por escrito ou por imagem, na língua demandada. Se desejado, pode até criar uma personagem gerada a partir de parâmetros demandados em montagem de elementos constitutivos a partir de pessoas reais, capazes de verbalizar a síntese formulada. A ponto de ser impossível detectar, somente pela visão, tratar-se de pessoa real ou fictícia.
Um chefe de estado, por exemplo, pode ser simulado a fazer um pronunciamento a favor ou contra determinada situação e ser impossível ao espectador distinguir tratar-se de situação verdadeira ou falsa. Provocar guerras, estabelecer a paz.
Novos tempos, novos riscos.
Hoje já somos bombardeados por fatos gerados ou descontextualizados, que nos induzem o pensamento. E ainda de forma muito primitiva e primária, mas que já dão muito trabalho a fact-checkers e, independente disso, geram efeitos permanentes.
E aí volta-se à questão principal. Pode o direito de expressão, direito fundamental, ser considerado absoluto ainda que essa informação objetive a desinformação?
Na falta de outro nome, vou chamar de Paradoxo Frega.