domingo, agosto 28, 2022

De Proscrito a Mito Parte I – O Resgate da História 2

Desde a queda do Império o surgimento da República por um golpe palaciano as disputas do poder político passaram pelos quartéis. Não poucas vezes essas disputas entre facções resultaram em revoluções e golpes.

Alguns absolutamente sangrentos, como as de Floriano, outras caudilhescas, como a Federalista, algumas regionais, como as de 23, outras utópicas, como o movimento dos 18 do Forte, outras genocidas, como Canudos, ideológicas, como as de 30 e 35, entreguistas, como a do Contestado, religiosas, como dos Muckers. E aí segue o caderninho. 46, 64, tentativas em 37, 52, 54, 56, 64, 77, 81 e assim por diante. Em todas uma constante, a presença ativa de militares, mas em fases bem distintas.

De todas as forças, o Exército é a de maior expressão. Pela capilaridade, pelo aceso, pelo poderio bélico, pelo número. Sem ignorar a presença de militares das outras forças, a análise das tendências e da cultura do Exército são imprescindíveis para entender esses movimentos.
E esses movimentos se sucedem em ciclos de mais ou menos dez anos.
A geração formada em uma década será instrutora dos que se formarem na década imediatamente posterior, comandantes da seguinte e dirigentes maiores na seqüência.
São quatro décadas de influência, mas que, por sua vez, vão se atualizando com entrada de nova turma e retirada da mais antiga, a cada ciclo parcial. Gradualmente a cultura vai se atualizando sob os pilares fundamentais da hierarquia e disciplina.

De 1889 a 1930 é possível entender que a principal influência fosse da geração dos militares que proclamou a República, positivista, supremacista, frugal com os recursos públicos, conservadora pelos valores da aristocracia que substituíram.
A partir de 30, já começa a ser influenciado pela onda de nacionalismo e autoritarismo político, tanto de direita como de esquerda. Uma curiosidade. O mesmo militar que elaborou o Plano Cohen, pretexto para o golpe do Estado Novo em 37, também tomou a iniciativa de desencadear o golpe de 64. Gen. Olímpio Mourão.

 Na década de 40, com o advento da FEB, observa-se a primeira grande mudança de eixo de influência. Até então mais presente até nos uniformes, a influência francesa dá lugar à estadunidense.
Nossos militares da Força Expedicionária lutaram sob comando direto estadunidense. Deles dependiam desde o armamento e munição até a alimentação e uniforme.
Em que pesem os atos de bravura que registramos e até enaltecemos, formávamos uma tropa secundária, muito mais presença política do que bélica.
Nossos militares aprenderam a admirar a organização e cultura estadunidense e ela serviu de modelo para as novas gerações de oficiais. Isso porque os combatentes da FEB voltaram americanófilos de carteirinha e, ao assumirem comandos no pós-guerra,  passaram a ser referência às novas gerações.
O alinhamento automático aos Estados Unidos na chamada Guerra Fria desenvolveu, nas Forças Armadas, uma alergia a tudo o que minimamente passasse por oposição ao american way of life e ao capitalismo transnacional.
Os formados na década de 50, no auge da Guerra Fria, sem nem sequer conhecer qualquer teoria política, foram formados em ambiente anticomunista radical, porém com viés nacionalista.

Os da década de 40 eram os comandantes maiores em 60. Os oficiais formados em 50, eram o estereótipo dos comandantes de unidades na década de 60. Entre gerações estão os aderentes, ou dirigentes do golpe de 64.
Explica-se assim o combate intensivo a qualquer coisa que minimamente pudesse ser chamado de esquerda, imediatamente rotulado como comunismo. Sem uma formação político-filosófica aprofundada e como o comunismo trazia a bandeira internacionalista, adotaram fortemente um discurso nacionalista, ainda que com um Estado forte e atuante em todos os segmentos econômicos, com planejamento plurianual de desenvolvimento em eixos estratégicos.
De forma geral nesse particular, muito mais se aproximavam dos governos então comunistas do que dos capitalistas. Entretanto nem se davam conta disso e mantinham a repressão política, por vezes violenta.

Formaram-se novos oficiais na década de 60. Em que ambiente?
Seus instrutores, ignorantemente anticomunistas oriundos dos anos 50, transmitiram esses conceitos agregando-os ao supremacismo vindo lá da primeira república. Uma combinação especialmente delinquente em se tratando de instituição.
A par do entusiasmo por rótulos sem conteúdo, foram condicionados ao combate messiânico do bem contra o mal. O maniqueísmo era a tônica.
O bem era o capitalismo mascarado de liberdade, o mal era o nivelamento presente no comunismo. Combate mesmo, com técnicas de combate e psicológicas absorvidas dos setores de inteligência dos Estados Unidos.
Só por curiosidade, o Heleno é da turma de 69.

 A nova geração, a de 70, formada pela de 60, comandada pela de 50. E pior, formada no auge da repressão política e normalizada pela presença maciça de militares em todos os segmentos da sociedade.
Villas Boas de 73 e Etchegoyen de 74, Bolsonaro de 77. Pujol de 77, Braga Neto, atual candidato a Vice, de 78, Silva e Luna, Itaipu e Petrobrás, de 72, Fernando de Azevedo e Silva, plantado no STF em 2016 e Min da Defesa, de 76. Hamilton Mourão, de 75.

 A partir das décadas de 70/80 também se verifica outro ponto de inflexão na cultura. O canto da sereia da globalização, patrocinada por Thatcher e Reagan com base em alguns teóricos do liberalismo também coincide com a derrocada do pólo comunista, queda do Muro de Berlin como símbolo da derrocada  e ascensão da Pax Americanae em um mundo monopolar, hegemônico.
A mudança dos desejos individuais de consumo associada à vitória capitalista globalizante, enfraqueceu os parâmetros nacionalistas de até então, substituindo-os pela capacidade de consumo. O dinheiro passou a falar mais alto, o que era visto como uma profissão de dedicação à Pátria transformou-se gradativamente numa carreira bem remunerada.
O que se verificou no surgimento da Teologia da Prosperidade rebate-se na Ideologia da Prosperidade, invertendo a lógica do servir ao Estado para servir-se dele.

 A geração de 80, instruída pela de 70, compõe hoje o grupo que dá as cartas, inclusive para Bolsonaro, um mero fantoche como se pode deduzir. Por enquanto, só um spoiler. Fantoche dos Marechais. Alguns nomes dessa geração: Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, atual Min. da Defesa. Eduardo Pazuello é de 84. O atual comandante do exército, Marco Antonio Freire Gomes, de 1980.
A geração 90 formada pela de 80 e... chega-se a de 2014, instruída pela de 1990/2000, comandada nas Unidades diretamente pela de 1980/90 e com comando supremo de 1970/80.
Esse comando maior, em boa parte, era contemporâneo de Bolsonaro na AMAN. O candidato bolsonarista em São Paulo, Tarcisio de Freitas, é de 1996.

 Essa neocultura militar de inserção na sociedade civil como um servidor público comum e de demonstrações de progresso econômico como plataforma de acesso social deu espaço para campanhas salariais, ainda que disfarçadas e movimentos para-sindicais corporativos.
Representativo do acesso social está a titulação acadêmica dos cursos militares.

O curso de formação de oficiais da AMAN sempre foi equiparado a curso superior para os fins necessários, embora não se tratasse de curso universitário, mas de escola única para formação profissional. E isso com justiça e coerência.
Acontece que as universidades formam bacharéis, algumas pós graduações, como mestrado lato e stricto sensu, doutorado e pós-doutorado. Todos eles com requisitos acadêmicos, teses, publicações especializadas, pesquisas etc. Catalogados todos na plataforma Lattes.
E como ficariam os militares sem titulação acadêmica para confrontar?
Arrumaram uma coisa ridícula. Bacharelado em Ciências Militares. Não precisavam disso, mas foram além na busca do status.
Da AMAN o profissional sai habilitado ao comando de pequenas unidades. Seu limite é o posto de capitão, o que acontece aproximadamente após cinco anos de formado. Lembram dos cadetes de 2014? São capitães, uma boa parte deles no comando de companhias.
A progressão funcional exige um curso de aperfeiçoamento. Realizado na EsAO, transmite os conhecimentos necessários para o uso da Arma como integrante de Estados Maiores. Grau acadêmico de Especialista, obtido nas universidades como Mestrado Lato Sensu, e na Escola de Comando e Estado Maior do Exército, com grau de Doutorado em Ciências Militares. Pré-requisito para ascender ao generalato.
Essa titulação ajuda em quê para as funções estritamente militares? Os conhecimentos, sim, o título acadêmico até se banaliza. Enfim, vaidades... Temos um Exército de doutores, que chique.

Vamos entrar mais fundo nessa figura, formada na AMAN na turma de 77. Um tal de Jair Messias Bolsonaro.

( continua em http://fregablog.blogspot.com/2022/08/de-proscrito-mito-parte-ii-o-tenente.html )