quinta-feira, junho 16, 2022

O Brasil na Amazônia

A execução de Bruno e Dom, embora praticamente anônimos para o grande público tornaram-se tristemente íntimos de todos nós em solidariedade e comoção, está longe de ser um fato isolado nos rincões e muito menos na Amazônia.

Certo está D Leonardo Cardeal, só tomamos conhecimento porque havia um estrangeiro e seu governo se manifestou. Não fosse isso, talvez nem a imprensa desse espaço e cobertura tanta, seria apenas mais uma execução, evidentemente favorecida pela política anacrônica e até criminosa dos marechais que nos desgovernam para a Amazônia. Destruição por atividades clandestinas, abandono da política de proteção aos indígenas e respectivas reservas.
Revivem os marechais ainda os ecos das palavras de ordem da década de 70, Integrar para não Entregar, o que propiciou a ampliação das fronteiras agrícolas mediante uma destruição inaudita do bioma sul da Amazônia, da transição para o Cerrado. Um horror, inadmissível hoje, porém os marechais ainda vivem no mundo de antes.

O fato concreto é que esse conjunto de fatores precisa ser repensado, não é mais suportável que mais da metade do território nacional seja simplesmente uma terra sem lei, sem Estado, formalmente brasileira, de fato abrigo para toda sorte de bandidagem nas áreas mais remotas.
Ou o Brasil assume sua Amazônia, ou abre mão dela. Não há mais meio termo. Como também o abrir mão não é uma hipótese aceitável, resta-nos assumir e cuidar dela.

Expressa nossa Constituição:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.   
§ 4º A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. (negrito meu)

Vou além. A Amazônia, majoritariamente incorporada ao território nacional, é também patrimônio imaterial da humanidade, por sua importância e impacto no ambiente mundial, o que nos acumula a dupla responsabilidade em seu cuidado. Tanto por ser patrimônio material brasileiro, como por ser patrimônio imaterial da humanidade, do qual somos guardiões. Será que estamos realmente consciente dessas responsabilidades?

O descaso e abandono, adotados como política oficial do atual governo, me sinaliza que não. E aí entra a execução desses dois martirizados. A Polícia federal declarou que os assassinos confessaram a execução. A eles cabe a responsabilidade subjetiva e espero que sejam exemplarmente punidos, na forma da lei, a mesma que eles desprezam.
Mas não se pode esquecer que cabe ao Estado a responsabilidade objetiva pelas execuções. Ou não compete à União as ações preventivas e repressivas para garantir o patrimônio nacional?

E aí cabem duas observações.

A primeira a alegação de se tratarem de reservas indígenas, configuradas no art 231 da Constituição. Transcrevo:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.
§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

Transcrevo o art 174 e os parágrafos pertinentes:

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. 
§ 3º O Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas, levando em conta a proteção do meio ambiente e a promoção econômico-social dos garimpeiros.

§ 4º As cooperativas a que se refere o parágrafo anterior terão prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e lavra dos recursos e jazidas de minerais garimpáveis, nas áreas onde estejam atuando, e naquelas fixadas de acordo com o art. 21, XXV, na forma da lei.

 

Como assim então o Estado pode fechar os olhos às invasões de terras de reservas indígenas por garimpeiros? Mais do que fechar os olhos, incentivar essa atividade inconstitucional?
Quando o Estado apóia o crime, sua responsabilidade objetiva exige a responsabilização subjetiva também dos agentes que permitem a inconstitucionalidade. E pior ainda, quando quem deveria reprimir simplesmente se omite, quando  persegue funcionalmente a quem se dispõe a cumprir a lei. Caso do Bruno, o executado, afastado da Funai exatamente por isso.
Só isso já seria motivo para indiciar o Presidente da República, o Ministro da Justiça, o da Defesa, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica e o Comandante  Militar da Amazônia. Tanto por crime de responsabilidade, nos termos da lei 1079, como por responsabilidade na recente execução do Bruno e Dom.

 Reservas indígenas são bens públicos da União, ainda que sob posse permanente dos habitantes indígenas. Mas não só elas.

Constituição Federal,
Art. 20. São bens da União:

II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;
III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;

 Há alguma dúvida que a área onde as execuções ocorreram eram bens da União? Não somente por se tratarem de terras devolutas, ou de reservas indígenas, mas também os cursos d’água fronteiriços.

E a quem cabe a responsabilidade de sua defesa?

 

LEI COMPLEMENTAR Nº 97, DE 9 DE JUNHO DE 1999

Dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas.

Art. 16-A.  Cabe às Forças Armadas, além de outras ações pertinentes, também como atribuições subsidiárias, preservadas as competências exclusivas das polícias judiciárias, atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, independentemente da posse, da propriedade, da finalidade ou de qualquer gravame que sobre ela recaia, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de

 I - patrulhamento
II - revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e            
III - prisões em flagrante delito. (negrito meu)

E aí chegamos no ponto. É hora de começarmos a entender o papel das Forças Armadas numa realidade que se modificou em absoluto nos últimos 50 anos.
Qual a necessidade do Brasil a ser atendida por essa instituição permanente de Estado?
Olhar suas atribuições com o ambiente e cenário do século passado, pra mim, representa enorme desperdício. De capacidades, de recursos, de oportunidades.

Já em sua declaração de princípios na refundação do Brasil em 1988, em seu art 4°, faz a opção pela igualdade entre os estados, pela defesa da paz e pela solução pacífica dos conflitos. Há o propósito explícito de não tomar a iniciativa de conflitos. Bastante apropriada, portanto, a denominação de Ministério da defesa para o comando das Forças.

O que se põe é que tipo de defesa, qual sua qualificação, contra que ameaças, em quais cenários.
A que ordem de conflitos armados nossa capacidade de defesa é eficaz, a que ordem, não. Quais defesas não armadas, preventivas de rupturas podem ser planificadas e executadas, eis a questão fundamental a ser discutida pela sociedade.

 Para melhor entendimento do tema, sugiro a leitura do artigo publicado em jul/2020, no link
https://fregablog.blogspot.com/2020/07/poder-militar.html

 O ciclo dos conflitos fronteiriços no Cone Sul ficaram para trás, são coisas do passado. Limites e fronteiras foram pacificadas e se ensaiam movimentos consistentes no sentido da integração socioeconômica entre os vizinhos. Integração essa que é a maior garantia de paz futura, independente de governos mais ou menos afins entre si.

A perspectiva de conflito bélico é bastante reduzida, seja pela integração, seja pela assimetria de poder nacional entre o Brasil e seus vizinhos.

É hora de voltarem-se os olhos para a última fronteira, a mais despovoada, a Amazônia.

Nesse particular, as Forças Armadas agigantam-se em seu papel institucional.

Não há mais necessidade de guarnições do Exército nas outras regiões, mas as há na Amazônia.
Todo o território deve ser coberto por guarnições, não nas cidades, mas nas áreas isoladas, de forma a que não haja distância superior a 300 km entre uma guarnição e outra. Pequenas unidades, talvez no nível de Companhia isolada. Que os esforços sejam dedicados à sua construção, com habitação e infraestrutura adequada para as tropas e famílias, se for o caso.
Que os Colégios Militares sejam transferidos para a região, possibilitando o atendimento aos filhos dos militares transferidos. Em regime de internato, se for o caso.
As unidades do Exército remanescentes nas outras regiões podem ser reduzidas a Armas incompatíveis ou inadequadas à operação em selva. Por outro lado, toda a aviação do Exército deveria ser lotada na Amazônia, proporcionando o suporte necessário às unidades isoladas.
Da mesma forma, Deveriam ser transferidas unidades da Marinha em quantidade compatível com o patrulhamento dos rios. Também todo o efetivo operacional de Fuzileiros Navais para ocupação e repressão ao tráfico e demais atividades ilegais, inclusive garimpos irregulares.

Da mesma forma, órgãos como Funai e Ibama deveriam ter suas presenças fortalecidas na Amazônia, atualmente a região de maior demanda.

 A Segurança Pública prescinde da presença das Forças Armadas, para isso há as Polícias Militares, Polícias Civis e as Polícias Federais. Mas a Amazônia não pode mais prescindir, ser abandonada pelo Estado brasileiro.
A não ser que estejamos realmente dispostos a perdê-la.

E o Brasil prescinde de Forças Armadas que se dediquem mais a golpes e conspiratas, a coquetéis e ameaças, a políticas e conchavos do que à sua defesa. Se for pra isso, melhor não tê-las.

Fica aberto o debate.