domingo, junho 12, 2022

Catarse

(Baseado em texto postado no FB em 03/out/2018. Continua válido para a eleição de 2022)

Que não se acresça a meus defeitos o desrespeito à soberania popular, fortemente ameaçada pelos marechais neoliberais que assumiram o poder político em 2016 e o consolidaram com a eleição de seu fantoche em 2018, mas temem que a eleição que virá os recoloquem nos seus devidos lugares institucionais. Esse lugar passa ao largo do poder político. Ao contrário, há que se submeter a ele, conforme expõe S. Huntington em O Soldado e o Estado (Bibliex, 1996). No entanto, o que se vê é que a ameaça de golpe à Constituição de 88 é concreta. Não, não há clima para os golpes armados, quase tradicionais de tão frequentes, pelo péssimo hábito das Forças Armadas se meterem na política, fora de suas atribuições constitucionais. Um vício secular que nos infelicita sistematicamente. O que se encaminha agora é mais solerte, mais cínico, mais vil, mais canalha.

O desgaste dos demais poderes por um dos poderes, exatamente o comandado pelos marechais neoliberais e o constante ataque lastreado em mentiras, acusações falsas e uso descarado do poder para usufruto próprio e blindagem dos crimes que cometem, sejam peculatos, sejam ataques à Constituição, seja na destruição do tecido social, o armamentismo desenfreado e descontrolado, tudo isso tem um objetivo claro: a geração do caos. Desse caos que geram, pretendem emergir como os salvadores e pacificadores. Seu ídolo Caxias deve espernear no túmulo. Pudesse ele, com certeza renunciaria ser patrono de golpistas, legalista que foi em sua vida.

Atravessamos tempos em que nem sequer há mais pudor de tramar às escondidas. A audácia do marechal traidor Villas Boas em sua mensagem ameaçadora e acatada por um STF circunstancialmente tíbio ou cúmplice, repete-se agora pelo ofício do Marechal que ocupa o Ministério da Defesa ao TSE. Escrachado, explícito, desaforado, ameaçador, mas não solitário. Há evidências fortes do envolvimento de outros marechais palacianos. A realidade é que as instituições que poderiam reagir foram instrumentalizadas para blindar. Isso também é corrupção, e das piores, das mais sérias, das mais criminosas. Como reagirá o TSE? É uma incógnita, até porque se reagisse como deveria talvez não tivesse força para garantir sua decisão. Vivemos tempos de caos anunciado, como antessala da ruptura.

E até a provável e inevitável ruptura me arrastar, como num tsunami, à perda da racionalidade e à luta pela sobrevivência e dignidade, minha posição será de defesa do Estado Democrático de Direito. Rompido o tecido, não há o que se falar mais de uma então inexistente soberania. A ela sobrevive a barbárie pura e simples.
Há uma corrente de pensamento histórico que associa a consciência dos povos a catarses violentas e sangrentas nos segmentos dominantes. Por mais que repugnem, os fatos se mostram realmente assim.
Essa catarse não ocorreu no Brasil, alguns movimentos pontuais não podem ser assim classificados. O único que se assemelhou foi na ditadura de Floriano, lá se vão 130 anos. Todas as outras catástrofes humanas sempre foram contra os mais vulneráveis, os menos favorecidos, os mais frágeis. Escravidão incluída. Essas não depuram, não reflexionam, não apuram. Antes degradam, embrutecem, tiranizam.
Talvez esteja chegando e o resultado é imprevisível, exceto em dois aspectos.
O primeiro deles é que a sociedade sobrevivente terá mais consciência de si, pois nunca sofreu uma tragédia de grandes proporções e universalizada. Nossa tragédia sempre se reduziu e limitou ao sangue dos mais vulneráveis, à base da pirâmide, aos invisíveis, à escória social, como dito acima. Por não terem voz nem rosto, sempre foi transparente.
Quando o sangue a correr for o de nossos filhos, pais, irmãos, sobrinhos e netos, amigos próximos, vizinhos, nossa consciência será outra.
Talvez se pudesse chamar isso de efeito Martin Niemöller, não sei.

O segundo é que, pela primeira vez na história do Brasil, e em proporções nunca vistas, os até agora invisíveis terão voz. A voz da fome, a voz da revolta, o grito do desespero. E não será bonito seu grito. Talvez não haja munição suficiente para calar a todos.
Na perspectiva de frustração de uma eleição das rejeições, triste por pressentir esse caminho sem volta, decepcionado com a ignorância e incapacidade de percepção da encruzilhada histórica por tanta gente boa, melhor do que eu, mas contaminada pelo ódio irracional que leva exatamente à catarse pela carnificina, recolho-me a minha insignificância e participação. Até que seja engolfado pelas chamas da intolerância, arbítrio, tortura e morte, até onde não caiba outro caminho além da reação, ainda que irracional e perdida.

Esta é minha última postagem nesse tema. Ao menos, gostaria que sim.